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Duas histórias que se passaram em momentos diferentes de minha vida, mas se interligam, vieram a minha memória. A primeira remete-se ao tempo de minha escola primária, na década de 1970, quando a professora “tomava” a tabuada dos alunos. Quando era “sequencial” não tinha problema, mas o “salteado”, hum… Algumas tabuadas eram fáceis, como a do 3, a do 4, a do 5, e até a do 6. Entretanto, a do 7 e a do 8 causavam temor. A do 9 então, me fazia tremer. Quando a professora “tomava” de um aluno as tabuadas do 7, do 8 e do 9, toda a classe ficava em silêncio, numa grande expectativa, como se fosse um jogo de futebol da seleção brasileira na Copa.

Mas qual era a dificuldade com essas famigeradas tabuadas que a gente não conseguia entender? Certa tarde, estava eu fazendo a tarefa, que consistia em completar operações envolvendo a tabuada do 9. Estava com muita dificuldade, pois, em minha cabeça, não havia um sentido ou forma de raciocínio que me levasse aos resultados. Eu simplesmente “empacava” e não sabia como efetuar operações como 6 x 9 e 7 x 9. Foi nesse momento que a figura de minha tia Cecília, que era professora primária, se fez presente, pondo fim à minha angústia. Ela calmamente me disse: “no caso de 1 x 9, você está tomando um grupo de 9, em 2 x 9 você está tomando dois grupos de 9, ou seja 18, e assim por diante.” Em minha mente, não estava claro o conceito da multiplicação como um processo de somas sucessivas. E minha tia continuou: “veja, você já sabe que 9 x 5 = 45, então, para obter 9 x 6 você soma 9 ao resultado do produto anterior, ou seja, 9 x 6 = 45 + 9 = 54”. Nunca mais tive problema com tabuadas, pois, com apenas dois pequenos exemplos explicitando o mecanismo das operações, o processo de multiplicação como somas sucessivas se descortinou para mim.

Compreendo a preocupação de muitos professores ao colocar o aluno frente a uma variedade de exemplos e situações, na esperança de fazê-lo entender os mecanismos da tabuada ou, no pior dos casos, decorar os inúmeros produtos. Entretanto fica a pergunta: o estudante entende o mecanismo da tabuada como um processo de somas sucessivas por meio dessa metodologia?

Minha segunda história tem início no ano de 1986, em meu primeiro dia na universidade. Tudo era novidade, o campus parecia enorme, novos amigos, e aquela excitação provocada pelo novo. Fui recebido por uma boa aula de cálculo, tratando dos números naturais. Terminamos a aula chocados, ao perceber como um assunto aparentemente tão inocente poderia ter se tornado, de uma hora para outra, tão complicado. Mas o pior ainda estava por vir. Descobrimos que tínhamos uma lista de exercícios como tarefa para casa com 27 páginas, contendo o trabalho das duas próximas semanas. Eram aproximadamente 100 exercícios, muitos deles com letras “a”, “b”, “c”, e me lembro de um que ia até a letra “t”. Aplicados e motivados como éramos na chegada à universidade, imediatamente começamos a resolver os exercícios. Muitos deles eram mera repetição de um determinado raciocínio ou propriedade, com a clara intenção de fazer com que algo “entrasse em nossa cabeça”; na pior das hipóteses, pelo cansaço. Essa era a perspectiva à época. Inclusive os livros perpetuavam a ideia da repetição exaustiva como fator essencial à aprendizagem. Como resultado, as listas de exercícios cresciam em número e complexidade, e o aluno, por sua vez, acabava se preocupando em resolver todos os problemas sem compreender por que estava fazendo aquilo, ou pior, sem conhecer os mecanismos envolvidos no processo de solução.

Passei pela graduação, terminei o mestrado e o doutorado, e tornei-me professor em uma universidade. Cometi erros não intencionais, na tentativa de acertar. Agia como meus professores do Ensino Básico, tentando desesperadamente fazer com que algo fosse compreendido. Como solução, recorria a “n” exercícios na esperança de que o excesso fixasse na mente dos estudantes um mínimo esperado. Independentemente da área, ou se uma ideia é elementar ou não, costuma-se pensar que o treino é suficiente para levar à compreensão.

No entanto, tal como meus antigos professores, não conseguia obter bons resultados com meu método de ensino. O conteúdo parecia ter um prazo de validade, que geralmente vencia no dia da prova. Depois disso, ele misteriosamente se desvanecia na mente dos estudantes a ponto de, no fim do semestre, já não se lembrarem do que estudaram no início.

Apesar de distantes no tempo e no nível de conhecimento, essas histórias refletem um mesmo fato: a crença de que grande “treino” em uma determinada atividade intelectual é suficiente para se evidenciar um mecanismo, uma ideia ou o estabelecimento de ligações entre diferentes facetas de um conceito. Nem sempre é, e a prática do dia a dia em sala de aula confirma essa situação. Isso quer dizer que a repetição é ruim? Também não.

Algo parece estranho com esse raciocínio: como a repetição pode ser ao mesmo tempo ruim e benéfica? Geralmente, esquecemos que quando o professor propõe uma atividade, ou uma sequência de atividades, há uma intencionalidade em sua ação. Não se repete apenas por repetir. “Qual a intenção na proposta da atividade?” – essa é a pergunta que fica. A intencionalidade pode se refletir na explicitação do produto como somas sucessivas (no caso da tabuada), a explicitação de uma determinada regularidade, a categorização de propriedades e situações, dentre outras. Se inicialmente não está claro quais objetos se quer evidenciar, todo o processo pode fatalmente se tornar inócuo, levando a equívocos, crenças falsas, sob pena de que não se produza significado, tendo como consequência o esquecimento.

Estabelecida essa relação de intencionalidade, percebemos que as construções mentais que esperamos dos alunos exigirão maior ou menor elaboração na proposta da atividade. Ela poderá ser curta, ou longa, quando for necessário explicitar etapas distintas.

Precisamos investigar e refletir sobre nossa prática, desenvolvendo ferramentas para lidar com as situações de sala de aula, buscando estratégias para a intervenção nas atividades – adequadas ao tipo de estudantes que temos a cada momento, e em cada sala de aula diferente.

Mas qual é o fim de minha segunda história, em relação à atualidade? Após 20 anos de magistério, descobri que não há fórmulas prontas, não há turmas perfeitas, e não há uma única atividade que se preste a desenvolver um dado mecanismo para toda uma turma. Cada aula representa um desafio diferente, tal como é diferente cada grupo de alunos, suas expectativas e suas histórias. Estudo, busco subsídios sobre estratégias e obstáculos, e avalio aquilo que o mundo acadêmico divulga sobre o ensino em minha área de atuação. Sobretudo, procuro aprender com os alunos e com minha prática. Isso me traz elementos para, antes de cada aula, prever as dificuldades e planejar as estratégias que vou usar com aquele grupo de estudantes. Sempre funciona bem? Não. Às vezes é preciso propor menos atividades, às vezes mais e às vezes retroceder.

Planejar e dimensionar atividades para um grupo de alunos é uma tarefa quase artesanal, que precisa levar o estudante a conclusões intencionalmente previstas. Isso exige do professor pesquisa, reflexão sobre sua prática e respeito às individualidades. Sobretudo, um trabalho apaixonado.

 

Fonte: Revista CPB Educacional – 2º semestre 2014.
Imagem: Tomasz Trojanowski / Fotolia