Outro dia apareceu lá na papelaria uma mulher toda apressadinha. Queria um pacotão de folhas de papel almaço.
“Uau”, pensei, “Chegou a minha vez!”
O atendente pegou logo o meu pacote, com outros 199 colegas ansiosos por conteúdo. Éramos um pacote plastificado com 200 folhas de papel almaço com pauta e margem. Em minutos, estávamos na sala onde duas meninas nos aguardavam.
Estranhei o que vi horas depois, mas me achei o máximo; afinal, EU, o GRANDE PAPEL ALMAÇO fazia parte dos novos tempos.
A garota mais velha terminava de bater os dedos num teclado e, a sua frente, numa grande tela luminosa, em segundos, apareceram palavras, imagens coloridas, gráficos, uma beleza de texto! E aí chega a mãe…
– Mas filha, não era pra escrever em papel almaço como das outras tantas vezes?
– Era não, mãe… É…
– E por que você fez esses slides todos no PowerPoint?
– Mãe, é que primeiro leio o que encontro nos livros, sites e revistas. Resumo as informações principais, seleciono as imagens, monto o texto final e digito pra ver que tamanho vai dar no PowerPoint. Daí, copio tudo em folha almaço.
– Mas por que não entrega assim, já que digitou tudo? Copia para o Word e imprime. Ou apresenta no PowerPoint mesmo, apenas completando o trabalho com uma apresentação oral de 2 minutos para a classe.
– Não pode!
– ?!?!
“Que bom”, pensei. “Agora é minha grande chance de aparecer.”
A menina copiou todo o texto para as minhas folhas. Imprimiu as imagens que vi na tela, recortou-as e colou-as em mim. Fiquei bonitão.
Aliás, quase bonitão. É que, lá pelas tantas, a letra foi ficando horrível, o cansaço era demais, e ela errou, errou, passou corretivo e… sabe o que aconteceu? A mãe teve que copiar o último slide, imitando a letra da menina, pra que ela fosse dormir mais cedo. Cedo? Já devia ser umas dez da noite.
Perto das onze horas, a mãe fazia o sumário do trabalho da filha mais velha. Veio o pai saber o que se passava…
– Escuta aqui… Como pode ser isso? O livro didático, no capítulo três, fala sobre Inquisição. Outro dia estudei com ela… Vi um questionário sobre Inquisição no caderno e agora essa pesquisa sobre Inquisição. Pra quê tanta perseguiç…, aliás Inquisição?
E continuou:
– Com a Luciana foi a mesma coisa… (Xi, estavam falando da filha caçula!) O livro falava de planetas, foram respondidas várias perguntas no livro sobre planetas, agora um questionário pra casa sobre planetas… e tudo escrito em papel almaço! Afinal, por que transferir o conhecimento de papel em papel? Isso me faz lembrar o tempo do meu pai… Sabia que já existia esse papel no século passado? E os professores continuam usando para a mesma atividade. Aliás, a dupla imbatível:
cartolina e papel almaço. Cartolina pra cartaz com figurinhas coladas com legenda e título em letras miúdas, e o almaço pra trabalhos escolares.
Vi que a mãe torceu a boca… mas ainda tentou defender os professores:
– Bom, pelo menos aprendem a fazer um trabalho com introdução, desenvolvimento, conclusão e bibliografia.
– Mas você não disse que esse era o quinto trabalho desse tipo? E olha que estamos ainda no segundo bimestre… Quantos ela fez desse tipo no ano passado? E no retrasado?
Ai, ai, ai… lá veio o pai querendo me tirar de cena!
– E pode ter certeza que outros virão. Por isso, já comprei esse pacotão. É um tal de almaço daqui e de lá… O prédio inteiro vem pedir almaço aqui em casa. Todo mundo faz trabalhos assim por aí. Aliás, todo mundo vírgula… Outro dia uma professora pediu o resumo do livro Indispensável para meninas em formato de jornalzinho. Veja aqui o arquivo da Dri. Ela não caprichou?
Aí que me dei conta… A mãe se referia ao trabalho que a filha fizera dias antes. “Mas não vale, né… foi v.i.r.t.u.a.l…”, pensei, repetindo aquela palavrinha nova. Eu tinha ficado fora de cena.
– … E sabe aquela outra pesquisa sobre a Fenícia, do ano passado? Virou A gazeta da Fenícia, com chamadas principais na primeira página, editorial, notícias, classificados, etc. Nada de almaço… tudo impresso pra parecer um jornal de verdade. Esses, sim, são professores de vanguarda.
O pai foi ficando vermelho, e eu fui me encolhendo todo. Ele me segurou no ar e me chacoalhou, dizendo:
– Quero ver se tudo que está aqui vai ser lido pelo professor mesmo, se ele vai perceber que essa criança de 12 anos domina o principal sobre a Inquisição.
Dias depois eu estava de volta. Orgulhoso, estampava um 9,0 sobre 10,0 na capa. Não era um notão?!
– Mas por que esse nove, filha?
– Pai, é que eu errei… aqui na página oito.
– Cadê? – o pai folheou e não viu nenhuma anotação do professor.
– Esse corretivo que passei na palavra “judeu” e na palavra “seria”…
– Só? – o pai parecia incrédulo ao ouvir a explicação da filha, com a voz cada vez mais baixa.
– É que na capa tinha que escrever “Inquisição”, e não “Trabalho de História”, e eu não coloquei o “www” antes do nome do site consultado.
Em alto e bom som escutei a conclusão do pai:
– Estudar a Inquisição seria “wwwonderful” se não fôssemos alvo dessa perseguição. Será que sou “judeu”?
(Seria engraçado se não fosse real.)
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