Uma pesquisa da Unicamp envolvendo cerca de 700 estudantes entre 6 e 14 anos, de escolas municipais, estaduais e particulares de Campinas, demostrou que mais de 70% deles estão insatisfeitos com o nível de ruído em sala de aula. A investigação constatou ainda que, para 99,2% destas crianças e adolescentes, as maiores fontes de barulho na escola são os próprios colegas.
O diagnóstico integra pós-doutoramento desenvolvido pela fonoaudióloga Keila Alessandra Baraldi Knobel junto ao Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação (Cepre) “Prof. Dr. Gabriel Porto” da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. O trabalho obteve financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e foi supervisionado pela docente da FCM Maria Cecília Marconi Pinheiro Lima.
“Realizei um levantamento, conversando individualmente com todos estes estudantes, para traçar um perfil sobre suas preferências e seus hábitos auditivos dentro e fora da escola. Concluímos que, embora a acústica da sala de aula agrave o ruído, o grande problema é o barulho produzido pelos próprios alunos. E o surpreendente foi que, quando questionados sobre os responsáveis pelos ruídos, a resposta era sempre ‘os muleque’, indicando que a maioria desses jovens não tem consciência sobre seu papel na produção da poluição sonora”, aponta Keila Knobel.
No momento, ela dá sequência aos estudos, com outro pós-doutoramento, também supervisionado por Maria Cecília Marconi. O objetivo é desenvolver um programa para a diminuição do ruído e a prevenção da perda auditiva em crianças e adolescentes.
“Trata-se de uma intervenção, levando em conta a gravidade do problema. Em curto prazo, o ruído na sala de aula afeta o aprendizado e a qualidade de vida destes estudantes, com relatos de cansaço, estresse, dor de cabeça e dor de ouvido. Já em longo prazo, o barulho intenso e constante pode causar a perda auditiva irreversível”, alerta.
Embora o barulho na escola não atinja níveis tão intensos, Keila Knobel explica que a somatória de ruídos ao longo dos anos pode provocar a perda auditiva. Ela cita estudos americanos indicando que 12% das crianças daquele país têm algum tipo de perda auditiva ocasionada pelo som intenso. Há também, de acordo com a estudiosa da Unicamp, relatos científicos apontando um aumento da perda auditiva de crianças e adolescentes em outros países.
“Quando o indivíduo recebe um som muito intenso, as células ciliadas localizadas no ouvido se quebram ou entortam, ao invés de apenas se movimentarem. Estas células ciliadas, que são milhares, podem até se recuperar depois que se quebram ou entortam. Numa festa muito barulhenta, por exemplo, a pessoa sai com o ouvido meio tapado, com um zumbido. Isso é sinal de que as células entortaram”, explica.
Neste caso, de acordo com a fonoaudióloga, a tendência é que o distúrbio se normalize nas 12 horas seguintes. “Agora, se isso for acontecendo repetidamente, as células serão mortas. Uma vez mortas, elas não se recuperam. Não existe cirurgia, transplante, nada, por enquanto, infelizmente. O que temos é a prevenção ou o aparelho auditivo”, completa.
DETALHES E INTERVENÇÃO
Ainda conforme dados do pós-doutoramento concluído por Keila Knobel, quando questionados sobre suas participações na geração do ruído em sala de aula, apenas 22,1% dos alunos admitiram também fazer barulho. Outros 34,8% disseram fazer barulho às vezes, justificando suas razões: “quando outras crianças conversam, eu fico com vontade de conversar”, “eu converso, mas só depois que acabo minha lição”, “eu converso, mas eu falo baixo, os outros falam alto”, “eu converso, mas eu paro quando a professora pede.”
Cerca de 60% dos participantes da pesquisa afirmaram que o ruído na escola “atrapalha a fazer a lição”, pois interfere na atenção e concentração. 10,3% relataram que o barulho “atrapalha a entender a professora”; 6,2% disseram ficar com dor de cabeça e 6,5%, com dor de ouvido.
Foram entrevistados 670 estudantes, do 2º ao 9º ano do ensino fundamental de escolas públicas e particulares de Campinas. A pesquisadora também ouviu 126 professores sobre percepções e incômodos em relação ao ruído no ambiente escolar. Ao classificarem o nível de ruído na escola, os professores apontaram a biblioteca como o lugar mais silencioso, e a sala de aula como o mais ruidoso.
“O ideal numa sala de aula é que o barulho máximo chegue até 65 decibels (dBs), mas constatamos que ele atinge 80 dBs. Neste caso, ainda não tem risco de perda de audição, mas já tem problema suficiente para aprendizagem e para afetar a audição em longo prazo.”
Os resultados apontados na pesquisa, concluída no ano passado, convenceram Keila Knobel da necessidade de uma intervenção, fruto do seu atual pós-doutoramento financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes).
“Utilizo todos os dados e conhecimentos dos anos anteriores como fundamento para este projeto. Na verdade, é uma continuidade, um aprofundamento. Consiste numa intervenção em 220 crianças e adolescentes por meio da adaptação de um programa de prevenção da perda auditiva chamado ‘Dangerous Decibels’, que na tradução significa decibels perigosos. Aliado a esta adaptação, nós elaboramos também um programa próprio para o controle de ruído na escola”, situa.
Uma das propostas, conforme a fonoaudióloga, é a montagem de aulas em que as crianças e adolescentes aprendem conceitos sobre os sons, vibrações, perda auditiva e o quê fazer para se protegerem. A intenção, de acordo com ela, é que alunos e professores discutam a questão do ruído na escola e que eles próprios elaborem um plano de ação a ser seguido por todos.
“Dentro ou fora do ambiente escolar, a orientação para as crianças, e que também serve para os adultos, é abaixar o som. Se não der para abaixar, se afaste. E se não der pra fazer nenhum dos dois, coloque protetor auditivo”, recomenda.
A pesquisadora da Unicamp esclarece que, como as células ciliadas são muitas, o processo de perda da audição ocorre lentamente. “Às vezes, o som muito intenso numa única exposição faz com que o indivíduo perca até 30% das células ciliadas. Mas isso dá alterações mínimas num exame audiométrico, por exemplo, e quando a pessoa se dá conta, pode ser tarde demais”, expõe.
CULTURA DO BARULHO
A sociedade atual vive uma “cultura do barulho” na opinião de Keila Knobel. “Para a festa estar ‘divertida’, a música tem de estar alta. Se você está se divertindo, grite. Quando você vai ao circo, os palhaços falam: ‘quem está gostando, dá um grito’, ‘quem gritar mais alto vai ganhar um pirulito’. Eles fazem isso, como se fosse uma manifestação da diversão”, exemplifica.
“Portanto, a cultura do som intenso vem dos pais, é uma questão de educação. É um ‘aprendizado’ que vem vindo. Mesmo na escola – onde a acústica pode não ser muito boa, onde as salas estão instaladas próximas ao pátio ou a uma rua mais barulhenta -, a queixa principal está relacionada ao ruído produzido dentro da sala. Isso nos faz pensar na relação entre aluno e professor, na falta de respeito dos alunos para com os professores e nas dificuldades destes em controlarem os alunos e despertarem o interesse pelo conhecimento”, reconhece.
A legitimação do barulho torna as crianças constantemente expostas a sons intensos, critica a estudiosa. O maior problema relatado pelas crianças fora do ambiente escolar são os fogos de artifício, acrescenta Keila Knobel.
“É muito preocupante porque elas vivenciam isso. As crianças falam: ‘eu já soltei com o meu pai’. Neste caso pode acontecer um trauma acústico. Um barulho de rojão chega a mais de 120 dBs. Surpreende que a maior parte das exposições ocorre em ambientes onde os pais estão, como soltar fogos, ouvir música alta em casa ou no carro, festas e eventos. Assim, os pais estão cada vez mais incutindo nessas crianças a cultura do som alto”, condena.
A saída, conforme a pesquisadora, é a educação. “O diagnóstico da minha pesquisa não retrata apenas as escolas de Campinas. É um cenário que se repete, com diferenças para mais ou menos em todo país e no Exterior. Nos EUA, por exemplo, as queixas são as mesmas. Se a questão da poluição sonora for encarada como ambiental – e é -, torna-se possível mudar”, acredita.
“Quantos de nós já não encara como normal separar lixo orgânico de inorgânico? Muita gente já adotou isso em casa, muitas escolas, inclusive. No momento em que as pessoas entenderem a questão auditiva, assumindo a sua própria responsabilidade de abaixar o som, de falar mais baixo, de colocar o celular no silencioso, de não arrastar a cadeira, esse cenário pode mudar. São diversas atitudes de educação, de gentileza, de respeito ao outro, que podem diminuir muito o ruído nas escolas, nos escritórios, nos restaurantes…”, ensina.
Comentários